sexta-feira, 20 de junho de 2008

Simulacro

Poder-se-ia dizer que foi aquele um dia fatídico? Nunca se saberá. Mas que o coração mudou, não há como se negar.

Ele cantou lá no fundo da alma. Era a nota certa para o coração petrificado. Uma onda de calor percorreu o peito da mulher que há muito tempo se tornara apática. O coração se encheu de esperança, pois poderia, após tanto tempo, o verão aparecer. Estava cansado e atormentado pela atmosfera cinza e melancólica que havia tomado a casa. E agora o som da beleza entoara a chegada de uma nova estação.

Era noite quando ouvira o homem cantar. A voz da insensatez, pura e demente. Não se podia dizer o que entoava, ou à quem. Um convite perturbador à todas as loucuras possíveis. O lograr da insanidade. O verão. E a mulher começou a imaginar como seria o dono da feitiçaria. Pensou em um alto homem, forte, traços finos, moreno. Depois o imaginou loiro. Castanho. Já não sabia mais. Entendeu que não faria diferença. Decidiu apressar-se antes que ele partisse. Olhou para todos os lados da rua de terra, a lua cheia iluminava bem os caminhos. Podia-se avistar de longe qualquer pessoa que passasse. Sentiu-se apreensiva pois não havia ninguém e o canto ficava cada vez mais baixo, mais longe. Foi então que o viu desfilar pela rua perpendicular. Caminhava serenamente, ao longe cruzava as esquinas. Ela se estremeceu. Pensou nos poucos segundos que tinha, no que deveria fazer. Alcançá-lo? Gritar? Desistir?

Escolheu correr ao encontro dele. Mesmo a distância podia-se ver quão alto e belo era, mas não conseguia ver com clareza o rosto. Mas ele terminara de cruzar a esquina e já desaparecia. Ela acelerou, mas quando chegou na encruzilhada havia sumido. O coração vacilou. Quis dizer qualquer coisa confortante à mulher, mas preferiu se calar.

Ela estava sem vaidade, porém o encanto a fez correr em seu quintal e apanhar algumas ervas para aromatizar suas roupas. Enfeitou-se com os velhos colares e vestiu-se de rosa. Penteou os cabelos longos e castanhos-claro. O desespero cessara. Era a hora da esperança. O sorriso ainda ensaiava sua chegada. O coração ainda não o conseguia libertar, afinal as portas estavam enferrujadas. Todas as noites sentava-se em seu jardim na ânsia de ouvi-lo outra vez. Ainda estava fresca a canção.

Mas os anos foram passando. Ela não podia segurar as horas. O calor da esperança tornava-se apenas uma brasa insignificante. O vestido amareleceu. A melodia nunca foi esquecida, e o homem desapareceu. Passaram-se muitos anos e o silêncio insistia em guerrear com aquela voz. A música parecia não mais ser a mesma, e a nota começara a desafinar.

Por muito tempo esperara ouvi-lo novamente, fazer tilintar os órgãos. Mas cansou-se. Aconteceu de o desespero voltar. O coração se rebelou e ordenou uma solução à mulher. Silêncio e desesperança eram grandes inimigos da alma. E veio a coragem. Ela tomou em suas mãos uma adaga e cravou-a no peito. O ato era dele que urgia por um caminho. Arrancou do tórax o impositor e decidiu plantá-lo e ver o que acontecia. Desejava que crescesse uma bela flor, uma rosa vermelha. Todos os dias aguava. Mas quando algo começou a crescer, não passou de gramíneas. Era fraca a semente, nem sequer ervas daninhas cresceram. Havia sido o coração plantado velho. E nada do esperado aconteceu. E a mulher também amareleceu.

O que nunca souberam é que o canto era lamentação. Nunca souberam que naquela noite se enganaram. Não conseguiram compreender que o homem chorava o fim do Amor.

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